domingo, 23 de setembro de 2012

O EXU DE ALBERTO MUSSA

O EXU DE ALBERTO MUSSA O propósito deste ensaio é analisar o personagem lendário africano Exu (ou Esu) no livro de contos Elegbara do escritor carioca Alberto Mussa – Rio de Janeiro: Record, 2005. O EXU EM “ELEGBARA” Na terceira narrativa homônima do livro Elegbara, Alberto Mussa constrói o seguinte enredo: “Fazia oito gerações desde a chegada de Oraniã, o fundador, que Oió só vinha conhecendo opulência. Daí a apreensão de todo o povo quando o rei deixou de comparecer aos mercados; e o abatimento profundo que logo se seguiu quando começou a correr a notícia da enfermidade que certamente o levaria à morte. O rei não morreu; mas também não melhorou. A doença tornou-se linear, permanente, estagnada como as águas que ficam para além de Ijebu – Odê. Foi quando Oió, a justa, a soberba, decaiu vertiginosamente. O cajado do rei não mais movia o mundo. E as lavouras não vingavam; as mulheres não pariam; os ferreiros não forjavam; vendedores não vendiam; compradores não compravam. Houve seca e houve fome.” p. 49 Como diz o historiador Roberto Motta há na cultura africana uma simbiose entre o oba, o oni e o seu povo. Na cultura africana, diferentemente da ocidental, “O regime econômico baseado na propriedade individual, no lucro particular, constitui novidade histórica. Só se encontra plenamente desenvolvido, no Ocidente, depois da Idade Média. Não faltam esboços de apropriação privada noutras culturas e época. Mas a regra é a subordinação do individual ao comunitário; das vantagens de alguns a interesses mais gerais. Só na Europa e em seus prolongamentos ultramarinos é que se encontra o tipo de economia autônoma, independente de direitos grupais sobre coisas e pessoas; desvinculada de controles éticos e religiosos; erigida em finalidade que contivesse sua própria justificativa, capaz de submeter a seus interesses todas as outras energias sociais e culturais.” Assim, o Rei não age autonomamente, age em função do reino, em função dos clãs e tudo prospera. Mas eis que surge um andarilho: “Oió estava a ponto de desesperar, quando apareceu, de súbito, vindo ao que parece do país nupê, um estranho andarilho de sorriso debochado. Carregava um bornal e uma catana, fumava cachimbo e tinha um gorro preto e vermelho. Parou bem na frente do mercado, onde se fazia uma assembleia. Foi notado por um dos mais velhos. – O reino é morto. Os estrangeiros não são bemvindos. – Não é esta, ancião, a fama de Oió, a justa. E eu vim pela justiça. – Dize quem és e para onde vais. – Não sei se hei ido ou se fui havido; mas irei ser e serei ido. – O que queres andarilho? – Quero apenas ser querido. Não é o vosso rei que se há tomado de um mal sem cura? – É sem cura o mal; não houve sábio capaz de vencê-lo. Não há mais que fazer em Oió. O andarilho deu então uma larga risada: – Não é esta, ancião, a fama de Oió, a soberba. E vim pela galhardia.” pp. 49-50 O andarilho é Exu, o orixá africano das encruzilhadas. E como se define Exu na prosa de Alberto Mussa? “-Eu sou andarilho antigo. Venho de andar muitas léguas. A terra é do meu tamanho. O mundo é da minha idade. Não há números para contar as proezas que fiz no tempo em que tenho andado: colhi mel de gafanhoto; mamei leite de donzela;esquentei sem ter fogueira; cozinhei sem ter panela; já fiz parto em mulher velha; emprenhei recém-nascida; trago a cura das moléstias e as perguntas respondidas. Quando soube do mal do vosso rei, vim oferecer os meus serviços. Só que tudo tem seu preço.” pp. 50-51. Ou seja, o que é este andarilho? Qual o seu papel na sociedade africana? Exu é o nganga, um feiticeiro, um sortílego, alguém que domina as noves portas, os noves dons (vide a obra do historiador Wilson do Nascimento Barbosa). Daí ele se sentir o máximo e poder prometer cura ao rei e ao reino da enfermidade, da perda de axé. Os Ngangas na cultura africana nascem com os dons e os aperfeiçoam iniciando-se sozinhos ou em sociedades secretas no meio da mata. A mata com seus mosquitos, espinhos, frutas venenosas, mas também ervas e fármacos curadores, assim como hordas de espíritos da floresta é que é a escola dos ngangas. Mas como todo bom feiticeiro ou sortílego, Exu não trabalha de graça. “- Oió é justa e é soberba; o andarilho haverá o preço que pedir. – Eu quero o preço justo. – E que preço é esse? – O que tenha a maior grandeza e caiba na menor medida. Ninguém entendeu. Nem prestou atenção. A fé humana está sempre além do próprio homem: o andarilho foi introduzido nos aposentos reais. E foram só trés dias. Todo o povo estava amontoado na praça do mercado quando as esposas saíram correndo do palácio para anunciar que o rei já estava de pé. A festa foi programada para a feira seguinte, mas a alegria se antecipou. Oió tornava ao que tinha sido. E até uma chuva serena chegou a reavivar o colorido da savana ressequida. Na data marcada, o rei reapareceu, cercado de pompa e aclamação. Dirigiu-se ao trono, no centro do mercado, e elevou a voz: – Que venha até mim o andarilho da carapuça vermelha e preta! Quando este se aproximou, o rei disse: – A gratidão de Oió não tem medida. Que o andarilho diga o preço. – Eu quero o preço justo.” pp. 51-52 Assim, o rei ofereceu várias prendas ao andarilho (cem peças de marfim, trinta catanas de ferro, dez partidas de contas de vidro, cinquenta escravos, entre outras). Mas o andarilho sempre retrucava: “- É pouco; e não cabe no meu bornal.” Até que o Rei ofereceu o próprio reino como prenda: “- É pouco; e não cabe no meu bornal. Houve um breve silêncio e o andarilho prosseguiu: – Não pode viver quem deve a vida. Eu quero a cabeça do rei. Ninguém acreditava no que ouvia. O rei desabou sobre o trono aterrado: – Como pode cobiçar minha morte quem veio para me curar? É um absurdo, uma covardia, uma infâmia, uma ingratidão! – Não – disse o andarilho -, é o preço.” pp. 52-53. – E o final surpreendente da trama: “E Oió não resistiu, como não resistiria pouco mais tarde ao assédio nupê. Compreendeu que, naquele momento, qualquer condescendência seria uma iniquidade; que o bem ideal era uma impossibilidade teórica. E o andarilho caminhou na direção do rei, decepou-lhe a cabela, meteu-a no bornal e, antes de desaparecer na curva da estrada, gargalhou pela última vez: – Ko si oba kan, ofi Olorun. E tinha razão: não há rei senão Deus. Elegbara é assim.” p. 53 Na metáfora da psicóloga junguiana Sônia Regina Corrêa Lages, O rei representaria o senex, o velho,o estabelecido, o estático, a ordem; enquanto Exu representaria o puer, o jovem, a instabilidade, o dinâmico, a desordem, o movimento. Um pai de santo de umbanda cruzada com angola me advertiu certa vez que não brincasse com o Exu (já que estava tentando aprender a jogar búzios sem ter mão de Ifá e sem ter um pombo ungila assentado), pois segundo ele: – Exu brinca com você mas você não brinca com Exu. O Exu de Alberto Mussa não é com certeza o Exu-egum da quimbanda brasileira, mas tampouco deixa de ter a ambiguidade do Exu-orixá da cultura iorubá. Quando os missionários pentecostais americanos foram a África e viram os igbás de Exu (um montículo de terra com um enorme pênis de madeira ou barro e sangue derramado) associaram o deus africano ao seu Diabo. Assim, Exu foi satanizado pelo cristianismo pentecostal e neo-pentecostal e ambiguamente assimilado pela quimbanda brasileira. Exu é orixá do movimento, da encruzilhada. A encruzilhada não é boa nem má, ela tem vários lados e várias possibilidades. E este dimensão multifacetada não cabe num Diabo cristão, que representa só o lado negativo da coisa. Assim, o andarilho curou o rei e o reino, mas pediu a cabeça do rei porque não gosta da presunção. A historiografia diz, que no Brasil, os escravos negros se utilizaram bastante de Exu para enfeitiçar os senhores brancos. Assim, Exu virou um aliado dos negros e não-negros pobres e um inimigo dos brancos ricos e poderosos. Alberto Mussa elaborou um conto de fina erudição, baseada na sua biografia de capoeirista e praticante de umbanda e alabê de candomblé. Os outros contos do livro merecem ser lido pois mostram a riqueza da cultura negra.

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